sexta-feira, 3 de abril de 2009

Um esporte ameaçado.


Um esporte ameaçado.


Por André Ilha (*)


Praticado eventualmente no Brasil desde o século 19, o montanhismo, termo que engloba caminhadas e
escaladas em rocha, ganhou impulso entre nós com a histórica conquista do Dedo de Deus, em Teresópolis
(RJ), em 1912, feito que teve repercussão nacional à época. Pouco depois, em 1919, era fundado o Centro
Excursionista Brasileiro, primeira agremiação do gênero em toda a América Latina, e desde então o esporte
vem crescendo de forma ininterrupta, reunindo hoje milhares de adeptos que o praticam, como norma geral,
dentro de elevados padrões técnicos. Boa parte desses montanhistas encontra-se filiada a dezenas de
clubes, quatro federações estaduais e, agora, também à Confederação Brasileira de Montanhismo e
Escalada (CBME), todos imbuídos do propósito de difundir o esporte dentro de padrões de segurança que
nada devem aos mais avançados centros de escalada em todo o mundo.
Além disso, os montanhistas, também como norma geral, possuem elevada consciência ecológica e,
cientes do impacto que a presença humana pode causar nos ambientes naturais, desenvolveram, em
parceria com o Ministério do Meio Ambiente, um conjunto de recomendações para a prática do chamado
montanhismo de mínimo impacto. Por amor às montanhas que freqüentam, eles se engajaram diretamente
na luta pela criação de muitas unidades de conservação importantes em maciços rochosos como, por
exemplo, o recém-criado Monumento Natural Municipal do Pão de Açúcar e a APA Morro da Pedreira, em
Minas Gerais, e outras mais foram instituídas por sua inspiração, como é o caso do Parque Estadual dos
Três Picos, na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro. E, num bem-sucedido esforço de autoregulamentação
de sua atividade, seminários de mínimo impacto em áreas específicas vêm sendo
realizados, provando ser possível conciliar o lazer com a preservação do meio ambiente. Entretanto, a
despeito do vigor apresentado por esse esporte amador que, como poucos, sintetiza a comunhão do
homem com a natureza, e da inegável responsabilidade com que ele é praticado hoje no Brasil, tanto em
termos de segurança física quanto ambiental, alguns fatos recentes têm ameaçado a sua prática tradicional,
mormente no interior de certas unidades de conservação federais.
O primeiro deles é a obrigatoriedade da contratação, em alguns parques nacionais, dos chamados
“condutores de visitantes”, moradores do entorno dessas unidades que receberam uma capacitação
superficial para levar turistas a certos destinos fáceis e pré-determinados no interior das mesmas. É
certamente desejável que tal oportunidade de emprego e renda seja oferecida aos jovens locais, mas ao
obrigar montanhistas experientes e responsáveis a desembolsar uma quantia nem sempre pequena para ter
ao seu lado um desconhecido menos experiente do que eles, que os levará a destinos repetidos e
tecnicamente inexpressivos, os gestores dessas unidades, por não tê-los distinguido de turistas citadinos
leigos, aniquilam o montanhismo de alto nível tal como ele é praticado em todo o mundo.
A existência de um serviço de condutores de visitantes opcional em parques e unidades afins parece-nos o
mais recomendável, uma vez que a grande maioria dos visitantes de fato precisa de alguém que lhes
permita tirar o máximo proveito de sua permanência, proporcionando-lhes a necessária segurança física
aliada à certeza do desfrute de certos atrativos naturais, ao passo que os montanhistas tradicionais, como
qualquer praticante dos chamados esportes de aventura, estão em busca do desafio e da dificuldade e, ao
mesmo tempo, dispostos a aceitar a incerteza de resultados que caracteriza tais atividades. Públicos
distintos, portanto, aos quais se deve proporcionar tratamento distinto, até porque o lazer é um dos objetivos
precípuos dos parques e unidades afins, conforme a lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC).
Já em outras unidades partiu-se para o estabelecimento de um sistema de concessões em princípio
bastante positivo quando se trata de serviços auxiliares, como bares, lanchonetes e venda de suvenires.
Entretanto, algumas extrapolaram, cedendo à grande pressão de empresários do setor no sentido de que a
prática de quaisquer atividades esportivas ou de lazer tenha que se dar, necessariamente, através da
contratação de uma empresa que as monopolize naquela unidade, mediante licitação. Em outras palavras,
ensaiam terceirizar não apenas os serviços opcionais, mas também o próprio uso público da unidade,
privatizando o direito constitucional de desfrute dos atrativos naturais de cada parque pelos cidadãos! Uma
vez mais a disponibilização opcional de tais serviços para os turistas inexperientes que aportam nessas
unidades aos milhares a cada ano em busca de alguma emoção configura-se como o correto – serviços
esses que, por sinal, serão melhores caso a concorrência não seja suprimida e um certo número de
operadores possam atuar simultaneamente.


Por todo o exposto, urge que as autoridades ligadas às áreas de meio ambiente, esporte e turismo avancem
juntas na compreensão de que existem duas espécies completamente distintas de usuários das unidades
de conservação. A primeira, bem mais numerosa, é a do turista convencional que, atraído pelas belas
imagens dessas áreas naturais, deseja conhecê-las de forma rápida e dirigida e que se valerá dos serviços
postos à sua disposição por guias locais ou por operadoras de turismo para maximizar os resultados de sua
visita. Já a outra, muito menor, é constituída por pessoas que buscam uma experiência mais intensa no
convívio com a natureza, envolvendo descoberta, desafio, auto-superação; pessoas dispostas a suportar a
frustração de eventuais fracassos, mas que por outro lado desfrutam as recompensas interiores
conquistadas por sua habilidade, técnica e perseverança, sem assistência externa. Isso tudo, claro, dentro
da estrita observância da legislação ambiental e assumindo plenamente os riscos inerentes a essas
atividades, o que implica isentar por completo os gestores de tais unidades, mediante termo próprio, na
eventualidade de um acidente.
No Ministério dos Esportes essa diferenciação já foi bem compreendida,e na área ambiental a atual
administração do Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ) vem desenvolvendo um modelo de
relacionamento com os montanhistas amadores que pode ser reputado como exemplar. Resta, contudo,
que este modelo seja devidamente apreciado e estendido a outras unidades pelo IBAMA e pelo próprio
Ministério do Meio Ambiente para que o montanhismo tradicional independente não seja banido dos
principais maciços do país, quase todos inclusos em unidades de conservação, em benefício exclusivo dos
empresários e de outros segmentos que se aproveitam comercialmente do boom dos esportes de aventura.
(*) André Ilha é montanhista, coordenador do Grupo Ação Ecológica (GAE) e foi presidente do Instituto
Estadual de Florestas do Rio de Janeiro, de janeiro de 1999 a abril de 2000 e de abril a dezembro de 2002.
Este artigo foi originalmente publicado na Seção “Opinião” de O Globo Online http://oglobo.globo.com/, em
14/08/06.
Fonte: http://www.redeprouc.org.br/artigos.asp?codigo=106

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